27.08.18
A verdadeira história da fragata “Gago Coutinho” (PARTE 1)
antonio garrochinho
Na madrugada de 25 de Abril de 1974, a fragata Gago Coutinho estava a sair para o mar, integrada num exercício da NATO, quando recebeu ordens de voltar para trás. O Estado-Maior da Armada mandava-a colocar-se diante do Terreiro do Paço e preparar-se para fazer fogo contra os blindados de Salgueiro Maia. A fragata não disparou, mas mantém-se até hoje a discussão sobre o que se passou a bordo nas horas seguintes.
Declaração de interesses: o autor do presente artigo é filho do comandante Seixas Louçã, que dirigia a fragata Gago Coutinho no dia 25 de Abril de 1974.
O dossier sobre o episódio da fragata já vai longo, e encontra-se quase todo depositado no Centro de Documentação 25 de Abril. A peça fundamental desse dossier é o Auto de Averiguações levado a cabo pela Marinha, em 1976, sob a responsabilidade do almirante Fernando Santos Silva, oficial prestigiado e a quem reconheciam qualidades de isenção todos os envolvidos na polémica sobre a fragata. No relatório que dele resultou, Santos Silva emite um conjunto de apreciações que hoje continuam, em grande parte, a ser válidas.
Em dois artigos relacionados com este (vd. ao lado), procurei actualizar essas apreciações com o valor que lhe acrescentaram depoimentos posteriores, e alguns muito recentes. Aqui limitar-me-ei a passar em revista as conclusões que, à luz do relatório de 1976 e desses depoimentos posteriores, podemos tomar como certas e aquelas em que continuam a existir versões diferentes, nomeadamente a do então comandante da fragata, Seixas Louçã, e a do então imediato, Caldeira dos Santos.
A ordem de fogo sobre o Terreiro do Paço
Por volta das 7h40 da manhã, o navio recebeu ordens do vice-chefe do Estado-Maior da Armada, almirante Jaime Lopes, para fundear diante do Terreiro do Paço e para se preparar para fazer fogo contra a coluna da Escola Prática de Cavalaria. Foi o comandante quem levantou objecções à ordem de preparação para fazer fogo: havia muita gente no Terreiro do Paço e vários cacilheiros no rio.
O comandante manteve além disso o navio em movimento, aliás mais acelerado do que era habitual, ignorando a ordem para fundear. Desse modo pretendeu reduzir a probabilidade de o navio ser alvejado com êxito por eventuais forças hostis. E mandou colocar as peças de artilharia em elevação máxima, para mostrar que não apontava para qualquer alvo em terra.
O imediato reconhece que o comandante se opôs à ordem de preparação para fazer fogo com munições de combate e admite, ao menos no Auto de Averiguações, que a decisão de colocar as peças em elevação máxima era uma decisão “prudente”.
Mas há duas versões contraditórias sobre o que ambos terão discutido, sem mais testemunhas. Em depoimento prestado em 1974, a versão do imediato ainda coincidia com a do comandante, negando ambos a existência de qualquer conversa nesse momento do dia. Mas a partir de 1976 o imediato passou a sustentar que tinha informado o comandante sobre um alegado compromisso “da Marinha”, de manter uma atitude de “neutralidade activa” para com o “Movimento”. O comandante, por seu lado, sustenta que, depois de ter levantado aquelas objecções, ouviu da boca do imediato palavras de aprovação pela sua resposta ao Estado-Maior, e nada mais do que isso.
Pouco depois, o comandante convocou uma reunião de oficiais, em que lhes apresentou as várias hipóteses de comportamento do navio no caso de este ser atacado. Nenhum dos oficiais presentes faz qualquer referência ao dito compromisso de “neutralidade activa” ou à natureza, objectivos e composição do movimento que se encontrava em curso. Nada foi dito sobre estes temas, nem pelo imediato, nem por nenhum dos presentes.
A ordem de fogo de salva
Em nova comunicação, o Estado-Maior da Armada dava entretanto ao navio uma ordem para fazer tiros de salva, para o ar. O comandante transmitiu essa ordem ao chefe do Serviço de Artilharia, com a variante de se tratar de tiros de exercício – em qualquer caso de pólvora seca. Segundo o relato do comandante, este oficial manifestou timidamente relutância em cumprir a ordem, ao que o comandante lhe perguntou se tinha problemas com as peças. À resposta afirmativa, o comandante mandou-o verificar o que se passava.
Entretanto, o comandante foi dizendo aos outros oficiais presentes que não havia problemas nas peças, como todos sabiam, e que era preciso pensar o que dizer ao Estado-Maior perante uma previsível insistência deste. Quando o Estado-Maior voltou a comunicar com a fragata, o comandante disse-lhe que o fogo de exercício não era possível, devido a problemas nas peças, que não especificou.
Segundo o chefe do Serviço de Artilharia, ao receber a ordem de preparar para fazer tiros de exercício este terá dito ao comandante que o imediato queria falar-lhe – a “deixa” para ser transmitida ao comandante uma combinação com outros oficiais contra eventuais ordens de fogo. Segundo o imediato, este terá então comunicado ao comandante que “a guarnição” se recusaria a fazer fogo de qualquer espécie.
O relatório do almirante Santos Silva dá as duas versões como possíveis, mas considera que, ainda na hipótese de ter havido uma recusa, esta foi torneada pelo comandante “com realismo e sensatez”, evitando desse modo uma ruptura irremediável com os oficiais.
A ordem do “Movimento”
O “Movimento”, que continuava a ser desconhecido pelo comandante com qualquer outro nome ou acrónimo, pôs-se entretanto em contacto rádio com o navio. O tenente Lourenço Gonçalves, seguindo instruções do Posto de Comando da Pontinha, pediu para falar com o imediato – não com o comandante – e deu-lhe instruções para o navio sair a barra do Tejo com as peças em baixo.
Gonçalves não se identificou e o imediato não ficou a saber com quem falara. Mesmo assim, o imediato transmitiu ao comandante a ordem do “Movimento”. Mas, como não dissesse quem tinha sido o seu interlocutor, criou no comandante a convicção de que lhe ocultava alguma coisa. O comandante disse-lhe então que estava “amarelo e cheio de medo” - e que o exonerava. O imediato recolheu “de livre vontade” à câmara e desapareceu de cena.
Entretanto, o comandante pediu ao oficial mais antigo, tenente Varela Castelo, que assumisse a função de imediato, mas este escusou-se. Ao abordar, depois, o tenente Palhinha, este não lhe opôs uma decisão pessoal, e sim uma reflexão mais ampla: considerando que “o pior já passou”, entendia que “é preferível ficar tudo como estava”. O comandante aceitou, aparentemente, as razões do tenente Palhinha e deixou “tudo como estava”.
A “insubordinação”
Pelas 14h30, o balanço do comportamento do navio era o seguinte: por um lado, o “Movimento” não tinha conseguido que o navio saísse a barra do Tejo com as peças em baixo; por outro lado, o Estado-Maior não tinha obtido dele a preparação para eventuais disparos com munição de combate sobre o Terreiro do Paço, não tinha obtido que fundeasse, e não tinha obtido que fizesse tiros de salva, para o ar. Quem tinha dado a cara perante o Estado-Maior era, em todos estes casos, o comandante. Se a revolução falhasse, era a ele que o Estado-Maior pediria contas.
A essa hora, o comandante convocou uma segunda reunião de oficiais, que vários depoimentos interpretam como destinada a acusá-los de “insubordinação”. O comandante, por seu lado, sustenta que a reunião se destinou a discutir, mais uma vez, o comportamento a adoptar durante a tarde, quando não ainda não estava claro que outras emergências poderiam deparar-se ao navio.
A palavra “insubordinação” terá surgido num outro contexto: o de chamar os oficiais - que aí se declararam abertamente contra quaisquer ordens de fogo -, a assumirem, durante a tarde, as suas responsabilidades perante eventuais ordens dessas, mesmo que isso pudesse ser considerado “insubordinação”.
A verdade é que depois de o comandante ter evitado o confronto aberto com os oficiais - com “sensatez e realismo”, como afirma o almirante Santos Silva -, não faria sentido algum vir agora acusá-los de “insubordinação”. E menos sentido faria juntá-los a todos e acusá-los a todos, metendo no mesmo saco os que se tinham manifestado, mesmo “timidamente”, e os que nada tinham dito.
Quanto a um alegado consenso da guarnição, incluindo as praças, o autor do relatório considera sem “consistência” o depoimento do imediato. Pelo contrário, os depoimentos de sargentos e praças constantes do dossier, muito favoráveis ao comandante, permitem compreender porquê este manteve sempre o navio em funcionamento. E convém lembrar que se tratava de fazê-lo funcionar em circunstâncias especialmente difíceis, sem poder aderir a um “Movimento” que desconhecia, e sem querer obedecer a ordens de um Estado-Maior que dava mostras de pânico e de irresponsabilidade nesse estertor final da ditadura.
O veredicto da Marinha sobre a fragata “Gago Coutinho” relido em 2014 (I)
Muita tinta tem corrido sobre o episódio da fragata”Gago Coutinho” no 25 de Abril. Boa parte dessa tinta tem sido gasta em divulgar as lendas mais convenientes ao “jornalismo sensacionalista” ou à história oficial. E, no entanto, a mais completa investigação da Armada sobre os acontecimentos desse dia data já de 1976 e foi concluída com um relatório do almirante Fernando Santos Silva. Voltar a lê-lo hoje, e confrontá-lo com alguns depoimentos posteriores, e com outros recentíssimos, é um exercício obrigatório para quem queira entender o que se passou.
Declaração de interesses: o autor do presente artigo é filho do comandante Seixas Louçã, que dirigia a fragata no dia 25 de Abril de 1974.
Logo nos primeiros dias de Maio de 1974, dois artigos publicados no Diário de Lisboa apresentaram de forma distorcida os acontecimentos ocorridos a bordo da fragata. Um primeiro, de 10 de Maio, punha a guarnição a tomar o controlo do navio e a fazê-lo sair para o mar. Um segundo, dois dias depois, sustentava que o comandante tinha mandado abrir fogo pesado contra a força de Salgueiro Maia e disso fora impedido pela guarnição. A isto se juntou algum tempo depois um livro que inventava uma suposta comunicação directa entre Marcelo Caetano e o comandante da fragata, com o propósito de o fazer disparar sobre o Terreiro do Paço.
As fábulas e os factos
Duas destas lendas morreram em pouco tempo. De facto, nem o navio alguma vez saiu a barra do Tejo, nem Marcelo Caetano alguma vez esteve em comunicação com o navio. Uma terceira lenda revelou-se coriácea e duradoura: a de o comandante ter mandado disparar sobre os blindados de
Salgueiro Maia.
O seu autor, Nuno Rocha, era um jornalista comprometido com a ditadura e batera-se até ao último instante para submeter à censura a edição do Diário de Lisboa do próprio dia 25 de Abril (segundo relato de Cesário Borga ao autor destas linhas). Tentara depois redimir-se dos seus pecados fascistas exibindo um excesso de zelo pelos estereótipos da revolução. Nesse breve interregno da sua biografia, quisera fazer da fragata “Gago Coutinho” uma versão caseira da “Bounty” ou do “Potemkine”.
O entusiasmo passou-lhe depressa e Nuno Rocha não tardou em tornar-se uma figura de proa da extrema-direita, especializado em leaks do Conselho da Revolução. Para trás deixou a lenda, ainda hoje repescada sempre que grandes encenações mediáticas reclamam algo mais empolgante do que a verdade prosaica e chã.
Mas também a lenda de Nuno Rocha já só pode sobreviver naquilo que o relator do Auto de Averiguações de 1976, almirante Santos Silva, classifica como “jornalismo sensacionalista”. Ela encontra-se categoricamente desmentida em todos os depoimentos recolhidos nesse Auto e na documentação depositada no Centro de Documentação 25 de Abril. Dos dez oficiais da fragata ouvidos em 1976, não há um único que não desminta a alegada ordem de fogo do comandante sobre o Terreiro do Paço.
Pelo contrário, todos os que elaboram um pouco sobre o tema dizem que o comandante opôs a uma ordem nesse sentido, recebida do vice-chefe do Estado-Maior, almirante Jaime Lopes, a objecção de haver numerosos civis no Terreiro do Paço e cacilheiros que continuavam a circular no Tejo. A mesma objecção do comandante volta a ser confirmada pelo então imediato da fragata, Fernando Caldeira dos Santos, em entrevista à Antena 1, por ocasião do 40º aniversário do 25 de Abril.
Todos os oficiais inquiridos negam também que, em algum momento do dia, o comandante tenha mostrado intenção de empreender qualquer espécie de acção agressiva contra alvos situados em terra. Do mesmo modo, é consensual naquele conjunto de depoimentos a constatação de que o comandante nunca mandou tocar a postos de combate nem guarnecer ou carregar as peças. O grau de prontidão do navio continuou sempre a ser o mesmo que tinha quando largou da Base do Alfeite, às 7h00 desse dia, para o exercício da NATO.
Na concepção do comandante, o principal meio de defesa do navio e respectiva guarnição foi sempre a sua elevada mobilidade e nunca o seu poder de fogo. Por isso, ignorou as instruções do Estado-Maior no sentido de fundear em frente do Terreiro do Paço e, bem pelo contrário, imprimiu ao navio uma movimentação rápida e com frequentes mudanças de sentido, para o tornar um alvo mais difícil de atingir. Com a mesma preocupação, mandou dar às peças a elevação máxima, para indicar que estas não apontavam para terra.
No Auto de Averiguações, o imediato considera “prudente” a ordem de colocar as peças a 85 graus (embora 26 anos mais tarde tenha passado a escrever que o único sinal inequívoco de que não iriam disparar seria tê-las colocado a 0 graus). Na altura, ambas as medidas foram portanto consensuais a bordo.
Aqui começam, no entanto, as divergências factuais e de interpretação sobre o que se passou, polarizadas principalmente em torno de duas versões – uma do comandante, outra do imediato. As duas versões têm mantido uma constância considerável, embora alguns pontos tenham sofrido ao longo do tempo alterações que podem ser postas na conta de uma natural erosão da memória.
Acresce que, a cada reacendimento da polémica, há sempre a tentação de lhe acrescentar o picante do inédito ou do scoop. Assim, já em 1994, afiançava o imediato num artigo assinado com outros oficiais:“Ao longo destes vinte anos, nenhum daqueles oficiais [signatários do artigo] se manifestou, publicamente, sobre os acontecimentos vividos a bordo da fragata ‘Almirante Gago Coutinho’ (…) Não podem, no entanto, calar-se ...". etc., etc..
Em 2000, voltava o imediato a afirmar em mais um artigo que então publicou: “Este é o meu primeiro depoimento público sobre a realidade dos factos ocorridos no dia 25 de Abril de 1974 (...) Demorei 26 anos a tomar esta decisão”. E o mesmo repetia em mensagem ao director do Centro de Documentação 25 de Abril.
Em 2014, Caldeira dos Santos deu várias entrevistas mais, uma a Luís Nascimento da revista Visão-História, outra a Maria Flor Pedroso da Antena 1, e poucos dias depois uma outra a João Adelino Faria. Nesta entrevista, terceira das concedidas só neste ano, voltou a afirmar: “É a primeira vez que em 40 anos me predispus a falar sobre a ‘Gago Coutinho’”.
Com tantas “primeiras vezes”, convém lembrar que há pouco de novo sob o sol desde o Auto de Averiguações datado de 1976. Nesse Auto de Averiguações com cinco centenas de páginas, os depoimentos de todos os oficiais foram recolhidos com grande precisão pelo almirante Santos Silva, que depois elaborou um relatório exaustivo, distinguindo escrupulosamente os factos dados como certos, aqueles que podem ser dados como plausíveis e aqueles em que a variedade de versões obriga a uma grande reserva.
Apesar de serem antagónicas as versões do comandante e do imediato, ambos reconheceram a “integridade e verticalidade” do oficial averiguante (palavras de Caldeira dos Santos). Ao averiguante respeitado por ambas as partes, coube arbitrar de certo modo os pontos de vista divergentes. O seu relatório final foi a última palavra da Marinha como tal sobre o que se passou na “Gago Coutinho” e a ele irei referir-me seguidamente, como marco milenário para a apreciação dos acontecimentos sob o ponto de vista militar.
A ordem de fogo sobre o Terreiro do Paço
Quanto à ordem de preparação para fazer fogo real sobre o Terreiro do Paço, é incontroverso que foi o comandante a inviabilizá-la, como atrás ficou dito; mas está menos esclarecida a contribuição de outros oficiais, se houve alguma, para o processo de decisão do comandante. O comandante não refere no seu depoimento nenhuma conversa prévia com qualquer dos oficiais.
O imediato, pelo contrário, declarou no Auto de Averiguações de 1976 que, logo no movimento inicial da fragata rumo ao Atlântico, ao passar diante do Terreiro do Paço, ele, imediato terá notado a presença de blindados na praça. Trata-se portanto de um momento anterior a qualquer ordem de fogo e mesmo anterior à ordem do Estado-Maior para o navio voltar atrás. Mais ninguém viu blindados nesse percurso inicial do navio, mas o imediato diz recordá-los e, desde 1976, diz ter comentado o facto com o comandante.
Mais tarde, no depoimento de 2014 à revista Visão-História, o imediato corrige a localização cronológica da alegada conversa com o comandante e passa a dizer que ela teve lugar quando o navio já tinha voltado atrás e depois de uma primeira ordem de fogo do Estado-Maior.
Dias depois, na entrevista à Antena 1, apresenta uma terceira versão dos acontecimentos e diz que aquele diálogo teve lugar quando a fragata passou em frente do Terreiro do Paço, já no movimento de voltar da ponte para trás, mas antes de qualquer ordem de fogo.
Em qualquer destas três versões do imediato, há algo que se mantém constante desde 1976: o conteúdo da conversa que teria ocorrido entre ambos, sem mais testemunhas, na asa
de estibordo da ponte (!). Aí terá dito o imediato ao comandante que “a Marinha tem um compromisso de neutralidade activa com o Movimento” e que seria “uma grande bronca” se o navio disparasse.
Além da incongruência entre os vários depoimentos do imediato, custa especialmente a crer que a conversa pudesse ter lugar exactamente nos termos que passou a recordar de 1976 em diante.
Com efeito, perante a afirmação alegada pelo imediato é praticamente impossível que o comandante não lhe tivesse exigido um esclarecimento sobre quem entendia por “a Marinha” e quem entendia por “o Movimento”. Que “Marinha” era essa, diferente da que o comandante tinha a dar-lhe ordens na fonia, e que “Movimento” era esse?
A pergunta sobre o “Movimento” – inevitável a partir do instante em que este fosse mencionado – certamente não foi feita nem foi respondida. O comandante afirma que durante todo o dia 25 nunca ouviu ser pronunciada a bordo a sigla “MFA”. E o silêncio sepulcral de todos os oficiais depoentes sobre essa sigla dá crédito à sua versão.
No relatório do Auto de Averiguações, o almirante Santos Silva também estranha que o imediato fale num compromisso de neutralidade activa, “chegando a mencioná-lo como sendo da própria Marinha”. Mais acrescenta o relator que a resposta atribuída ao comandante sobre uma eventual ordem de fogo (“longe de mim tal ideia”) se coaduna mal com os esforços que o imediato diz ter envidado logo a seguir, no sentido de comprometer oficiais e alguns sargentos a desobedecerem no caso de uma ordem de fogo do comandante.
Segundo as palavras do almirante Santos Silva, se na verdade o imediato já nessa altura tivesse obtido do comandante uma resposta tranquilizadora, “não se compreende facilmente a sua preocupação em obter a adesão dos sargentos e pô-los perante uma ordem que curto-circuitava o comandante”. Salta portanto à vista a inconsistência lógica da versão exposta pelo imediato em 1976, e desde então repetida constantemente e glosada por ele sob muitas e variadas formas.
Mas essa inconsistência dissipa-se se recuarmos da memória convenientemente construída dois anos depois dos factos para aquela, ainda fresca, que, logo dois dias depois, foi ditada para os autos de um primeiro inquérito, do Comando Naval do Continente. Caldeira dos Santos disse então, preto no branco: “Não tive qualquer conversa com o comandante sobre o Movimento, seus chefes ou Programa, nem antes nem durante o dia 25, até ao momento da ‘ordem de abrir fogo [de] dois tiros para o ar com munições de exercício’”.
Aos tiros com munições de exercício voltaremos mais adiante. Para já, retenhamos a conclusão do relator desse primeiro inquérito, depois de ouvidos os depoimentos do imediato e do comandante, concordantes sobre este ponto: “O comandante parecia desconhecer a extensão do Movimento das F.A., seus chefes, seu Programa”. Categoricamente, logo nesse sábado 27 de Abril, conclui o relator que “pelo menos não houve conversas a este respeito com o seu imediato”.
Quando muito, podemos admitir que tenha havido uma conversa entre ambos, que o comandante relata de forma diferente e situa em momento diferente, no seguimento das objecções que ele, comandante, já tinha levantado à ordem de preparação de fogo emanada do Estado-Maior. Aí lhe terá dito o imediato que podia contar com o apoio dos oficiais, caso surgissem problemas por o comandante ter manifestado ao Estado-Maior a impossibilidade de fazer fogo. Esta versão estaria aliás muito mais de acordo com o carácter bajulador de Caldeira dos Santos, tal como o recordao capitão-de-fragata Sérgio Ribeiro Zilhão, que anteriormente o tivera como oficial de artlharia num outro navio que comandava.
Mas, se a conversa se processou nos termos recordados pelo comandante Seixas Louçã, ela não podia influenciar a sua decisão de levantar objecções à ordem do Estado-Maior. Tratar-se-ia, com efeito de uma conversa posterior a essas objecções. Assim, a decisão do comandante de se opor à ordem de preparar para fazer fogo sobre o Terreiro do Paço foi dele, e só dele.
Uma reunião e três alternativas de comportamento
Houve, sem dúvida, ainda durante a manhã, entre as 8h30 e as 9h00, uma conversa entre o comandante e os oficiais, mas por iniciativa do comandante, na primeira de duas reuniões que o próprio comandante convocou para a câmara dos oficiais. Destinava-se essa reunião a discutir o que fazer caso o navio fosse atacado por forças hostis. A prever tal eventualidade, o comandante já tinha mandado fechar todas as escotilhas abaixo da linha de água. Mas vários declarantes parecem ter achado pouco provável o navio ser atacado.
Todos os oficiais depoentes recordam que o comandante traçou, para o cenário de um ataque, três possíveis comportamentos do navio, sendo dois deles o de responder ao fogo ou o de fugir (a expressão que ficou gravada na memória de vários oficiais foi: “como um cão, com o rabo entre as pernas”).
Quanto ao terceiro comportamento possível, vários oficiais recordam-no como sendo o de não dar qualquer resposta. Terá sido esta efectivamente a terceira alternativa colocada pelo comandante, sendo ela tão absurda que só se lhe pode atribuir um propósito retórico, ou seja, o propósito de obrigar os interlocutores a uma resposta negativa? Se se tratou de uma armadilha retórica, surpreende que vários oficiais tenham caído nela e se tenham pronunciado a favor de não dar qualquer resposta em caso de o navio ser atacado. Com essa aparente ingenuidade, suscitaram o espanto do almirante Santos Silva, que considera tal hipotética decisão “grave”.
Em coerência com esta versão, os mesmos oficiais julgam recordar, por vezes com reservas sobre a precisão da sua memória, que o comandante tenha manifestado preferência por abrir fogo em resposta a eventuais forças agressoras.
É justo observar que os declarantes não efabularam sobre uma aparência que sabiam ser enganadora: o comandante tinha mandado municiar cada grupo de peças com 4 granadas de exercício e com 10 granadas de alto explosivo. Essas ordens eram, segundo o almirante Santos Silva, “o mínimo que o comandante poderia fazer em cumprimento das ordens recebidas [do Estado-Maior]”.
Assim o entenderam também na altura os oficiais envolvidos na sua execução, que não levantaram quaisquer objecções conhecidas. O almirante observa que “as ordens que o comandante foi dando para a artilharia, não envolvendo execução de fogo, foram sendo cumpridas”; e o imediato admite ter sido ele a mandar colocar munições nos redutos das peças (embora sustente, desacompanhado nesse ponto por qualquer outro depoimento, que o comandante também as mandou carregar).
Por outro lado, o problema é complexo, porque o comandante não recorda, na sua versão, ter colocado a referida pergunta retórica. Para além de responder ao fogo hostil ou de pôr o navio em fuga, o comandante sustenta que a sua terceira alternativa era a de manter o navio em movimento acelerado – opção que na verdade vinha merecendo a sua preferência e iria ser posta em prática. O comandante argumenta aliás que a hipótese de fazer fogo contra alvos em terra continuaria a apresentar o risco de terríveis danos colaterais, que já antes tinha inspirado as suas objecções ao Estado-Maior e, mesmo em resposta a fogo hostil, continuaria a fazer perigar vidas humanas.
Ainda sobre esta reunião, é de salientar que o almirante Santos Silva, atento à hora em que ela ocorreu, insiste repetidamente na pergunta: terá sido aí dito algo ao comandante que o pusesse a par das conversas que o imediato vinha tendo entretanto com os outros oficiais sobre eventuais ordens de fogo? Nada foi dito. Em consequência, o almirante coloca directamente ao imediato Caldeira dos Santos uma outra pergunta: “Não teria sido uma boa oportunidade para informar o comandante quanto àquela decisão dos oficiais [a alegada recusa a quaisquer ordens de fogo]?”.
A isto apenas responde o imediato: “Passados dois anos dos acontecimentos é-me praticamente impossível responder a esta pergunta”. E, no entanto, a pergunta não se refere ao silêncio sobre o tema, que todos os depoimentos confirmam. Refere-se ao carácter e ao momento da reunião, que ainda hoje, 40 anos depois, se pode resumir com uma resposta afirmativa à pergunta: era uma boa oportunidade para falar e foi desperdiçada.
A ordem de fogo para o ar
Algum tempo depois da reunião com os oficiais, por volta das 11h00, o comandante recebeu nova ordem, desta vez do almirante Ferreira de Almeida, chefe do Estado Maior da Armada, no sentido de mandar disparar tiros de salva para o ar, “para marcar uma posição”. O comandante mandou municiar as peças com granadas de pólvora seca - não de salva, que não havia a bordo, mas de exercício.
Contudo, a partir daqui há duas versões. Numa, do imediato, houve uma “recusa” à ordem de fogo, assumida em nome dos restantes oficiais e manifestada frontalmente pelo próprio imediato. Essa “recusa” terá sido anunciada na ponte, em frente de várias testemunhas, por o comandante não ter acedido a uma solicitação do imediato para lhe falar em privado na asa da ponte de bombordo.
Na entrevista à Visão-História, o imediato sustenta que nesse momento o comandante o declarou exonerado. No artigo publicado em 2000, pelo contrário, o imediato sustenta que a intenção de exonerá-lo apenas lhe foi anunciada posteriormente, quando “se dirigiu para a ponte do navio a fim de informar o Comandante da comunicação ocorrida” por parte do Movimento, e a que voltaremos mais adiante.
As incongruências entre as várias versões do imediato não ficam, aliás, por aqui. Na entrevista de 2014 a Maria Flor Pedroso, recorda-se de ter falado ao comandante em nome da guarnição – portanto também de sargentos e praças -, para “recusar” abrir fogo. Mas, no Auto de Averiguações de 1976, ainda não se recordava de tudo isto e invocava falta de memória para precisar se também tinha falado em nome dos sargentos. Do mesmo modo, aí invocava também falta de memória para precisar se a “recusa” de fazer fogo se estendia igualmente à eventualidade de o navio ser atacado.
Na versão do comandante, este deu ao chefe do Serviço de Artilharia, tenente Dores de Sousa, uma ordem - não de execução, mas de preparação - para fazer fogo para o ar. Ainda segundo o comandante, aquele oficial, “em voz tímida”, manifestou discordância, trocou olhares com o imediato, mostrou-se relutante. O comandante perguntou-lhe então se tinha problemas nas peças. À resposta afirmativa, o comandante mandou-o ver que problemas eram, e dizer alguma coisa depois.
Mas o comandante previa que o Estado-Maior insistisse na ordem e disse aos oficiais presentes que percebera a relutância. Com efeito, ele - que teve a iniciativa de falar de “problemas nas peças” - sabia melhor do que ninguém como eram inventados esses “problemas”. Por isso, disse aos oficiais presentes na ponte que deviam pensar “dois minutos” sobre o que dizer perante eventual nova investida do Estado-Maior.
O comandante, na pergunta feita ao tenente Dores de Sousa, já lhe fornecia a resposta sobre os “problemas nas peças”, que o tenente se apressou a confirmar. Desse modo, com uma pergunta altamente sugestiva, o comandante obtivera do seu oficial especialista a resposta que necessitava para justificar perante o Estado-Maior que o navio não disparasse sequer para o ar. E assim fez em resposta a nova comunicação do Estado-Maior, por volta das 11h45, ganhando tempo.
Uma inesperada convergência
Por outro lado, é também interessante analisar os motivos pelos quais a generalidade dos oficiais justificará mais tarde a sua oposição aos tiros de exercício. Nenhum deles diz ter-se preocupado especialmente com a possibilidade, sempre remota, de os projécteis inertes caírem sobre pessoas ou navios: uma adequada movimentação da fragata podia reduzir esse risco praticamente a nada. E à preocupação com as “gerbes” – ou seja, os salpicos dos projécteis a caírem na água - ninguém se refere a não ser, recorrentemente, o imediato.
De qualquer modo, uma eventual ordem de execução nunca seria dada antes de a fragata se ter movimentado até uma posição de onde pudesse disparar sem os projécteis inertes caírem sobre alguma coisa ou alguém.
A verdadeira – e justificada – preocupação dos oficiais era que os disparos pudessem ser mal interpretados pelas forças do “Movimento”. Ao contrário do que sugere, neste ponto, o almirante Santos Silva, o disparo que se pretendia “dissuasor” podia ter um efeito provocador. Se as forças de terra não entendessem o tipo de fogo que era feito, poderiam disparar contra a fragata, pondo a rolar uma bola de neve de consequências imprevisíveis.
Curiosamente, os mesmos oficiais que na reunião da câmara sobre as “três hipóteses” tinham achado altamente improvável haver forças de terra a dispararem contra o navio, preocupavam-se agora com a eventualidade de o navio ser alvejado devido a uma acção de fogo para o ar. O comandante, que considerara a eventualidade de um ataque ao navio como suficientemente palpável para fazer dela o objecto da reunião na câmara, tinha motivos para acolher a preocupação agora manifestada pelos oficiais.
Para além de todas as dificuldades de diálogo, existia aqui um terreno de entendimento mútuo que acaba por explicar que a ordem de preparação para o fogo de exercício nunca tenha dado lugar a uma ordem de execução.
Existiu, na altura, uma cumplicidade tácita entre quem dava a ordem e quem diz tê-la “recusado”. O almirante Santos Silva muito judiciosamente valoriza o testemunho do tenente Palhinha, único oficial que a tudo assistiu por estar de quarto, e observa que este oficial “não se refere a uma recusa formal por parte do imediato e do chefe do Serviço de Artilharia, mas sim a uma discordância”. O tenente Varela Castelo utiliza a palavra “recusa”, mas admite que não houve quebra de disciplina “porque o comandante respondeu à recusa dos oficiais em abrir fogo com uma atitude aparentemente, pelo menos, conciliatória”.
A conclusão do relatório quanto ao carácter da ordem dada é a de considerar “aceitável a versão do comandante quando afirma que a ordem fora apenas de preparar para fogo”. Quanto ao restante, diz o relatório que “o comandante manteve o domínio da guarnição, mesmo depois de não ter sido dado seguimento à ordem de fogo para o ar – por uma recusa formal dos oficiais, segundo o imediato e alguns oficiais, ou por uma discordância evidenciada com certa timidez pelo chefe do Serviço de Artilharia, segundo o comandante, que teria torneado a situação admitindo a existência de problemas na artilharia e suspendendo, assim, automaticamente a ordem”. Mais considera o almirante Santos Silva que o comandante “soube evitar uma situação de confronto aberto com os oficiais, no que demonstrou sensatez e realismo”.
Quem “controlava” o navio?Entretanto, o imediato foi chamado à fonia, também pelas 11h45, para receber uma mensagem do “Movimento”. Na maioria dos relatos sobre a comunicação entre o imediato e o “Movimento”, esquece-se que havia uma outra pessoa presente, o sargento telegrafista Augusto Marques, então responsável pelo Centro de Comunicações (cabina TSF). Mesmo o escrupuloso Auto de Averiguações de 1976 ignorou este testemunhoessencial. Ele só em 1994 foi passado a escrito por Augusto Marques, a pedido do comandante.
Com esta ressalva prudencial, devemos registar que o sargento Augusto Marques recorda a pergunta do oficial do Movimento sobre a eventualidade de o navio abrir fogo e a forma como surgiu a resposta: “O imediato Caldeira dos Santos estava comigo na cabine e manifestava sinais de nervosismo evidentes, sem saber o que dizer ao oficial do Movimento. Estou consciente de que empurrei o imediato para uma resposta, caso contrário ele não se tinha decidido: ‘- Diga-lhe que o navio não fará fogo’ (...) O comandante Louçã nunca deixou de ter o comando do navio e eu não tive quaisquer dúvidas sobre a resposta que o imediato deveria dar ao oficial do Movimento: ‘-Diga-lhes que o navio não fará fogo’ E nunca esteve para fazer!”
Segundo afirmou o imediato na recente entrevista a Maria Flor Pedroso, ele terá dito então ao seu interlocutor no outro extremo da comunicação que “a situação a bordo estava controlada, o comandante tinha mandado abrir fogo de munições de exercício para o ar e que a guarnição se tinha recusado. Portanto, situação controlada”. Esta versão do que foi dito parece confirmada pelo interlocutor do outro lado da comunicação, Lourenço Gonçalves, também entrevistado por Maria Flor Pedroso.
No entanto, Gonçalves vai muito mais longe do que a “situação controlada” e a “recusa” do fogo de exercício. Ele fala em duas ordens contraditórias dadas por si próprio à fragata, como num menu de escolha múltipla: ou sai a barra com as peças em baixo ou fundeia. Logo aqui, não é nada crível que o “Movimento” intimasse a fragata a fazer uma coisa ou - se preferisse - o seu contrário. Depois, Gonçalves põe na boca do imediato as seguintes palavras: “Logo que [os oficiais] conseguissem convencer o comandante, iriam fundear”. A memória engana-o, portanto, sendo que a ordem transmitida pelo imediato foi a outra do tal menu, diametralmente oposta à de fundear.
Além disso, Lourenço Gonçalves divaga sobre alegadas ordens de fogo real do comandante, dadas várias vezes, e recusadas várias vezes, tomando como alvo as tropas. Retoma, enfim, a fábula de Nuno Rocha, num depoimento fantasioso, imprestável para qualquer efeito de reconstituição dos acontecimentos, do qual quase não se aproveita palavra alguma e que leva a encarar com reserva o crédito que noutro ponto empresta ao do imediato.
Podemos, mesmo assim, supor que o imediato tenha recordado fielmente na entrevista a Maria Flor Pedroso aquilo que, induzido por um sub-oficial mais resoluto, acabou por comunicar ao “Movimento”. Mas a suposição de que o imediato tenha descrito a situação a bordo nos termos citados não implica que a descrição reflectisse o que realmente se passava. Ele pode dizer agora a verdade do que disse ao Movimento, e na altura não ter dito ao Movimento a verdade do que se passava a bordo.
Já vimos que o relatório do almirante Santos Silva dá crédito à versão do comandante sobre o carácter que tinha a ordem de tiros para o ar (ordem de preparação e não de execução), e já vimos que o mesmo relatório, baseado especialmente na testemunha presencial ouvida para o Auto, tenente Palhinha, dá como problemática a versão da “recusa” da ordem. A esse relatório junta-se agora o depoimento do sargento Augusto Marques, que nos faz recuar ao ponto da alegada “recusa” e nos deixa sobre ela uma perplexidade adicional.
Segundo este depoimento, o imediato, em estado de abatimento e nervosismo, teve de receber instruções do sargento telegrafista sobre a resposta a dar ao “Movimento”. Poderia o mesmo imediato abatido e nervoso ter tido a força anímica para se plantar diante dum comandante de personalidade alegadamente intimidatória e para lhe declarar pomposamente a “recusa” da guarnição? Poderia o imediato, com essa aparência trémula e insegura, aspirar a “controlar” a situação a bordo? Teria ele os requisitos necessários para “curto-circuitar” o comandante, como diz o almirante Santos Silva, ou para exonerar o comandante como mais tarde, por meias palavras, confessou ter fantasiado?
Ordem do “Movimento” transmitida em chamada anónima
Passemos daí para a comunicação que o imediato fez ao comandante e que está descrita por este, tal como a sua memória a reteve:
“Imediato: Sr. Comandante, atendi uma comunicação na fonia, em que o comando do Movimento manda o navio baixar as peças e sair a barra, estando os fortes todos na posse do Movimento.
Comandante: Mas o que é o Movimento?
Imediato (Silêncio)
Comandante: Sabe quem enviou a mensagem?
Imediato: Foi um oficial da Marinha do Movimento.
Comandante: Identificou o oficial que lhe falou?
Imediato: Identifiquei, sim, sr. Comandante.
Comandante: Então quem foi?
Imediato: Pois, foi um oficial da Marinha do Movimento”
O único ponto problemático deste relato em discurso directo diz respeito à identificação do oficial do Movimento. Nas declarações que prestara ao Comando Naval do Continente em 27 de Abril de 1974, o comandante julgava recordar ainda uma confissão de ignorância do imediato sobre a identidade do interlocutor. Na reconstituição de 1976 que acabo de citar, o comandante sustenta que o imediato disse tê-lo identificado, embora aparentemente não quisesse dizer-lhe de quem se tratava.
No Auto de Averiguações e na entrevista a Maria Flor Pedroso, a versão do imediato coincide com a primeira versão do comandante: o imediato ter-lhe-ia confessado a sua ignorância sobre a identidade do interlocutor. Na entrevista, acrescenta que só agora (2014) veio a saber que do outro lado estava o então tenente Lourenço Gonçalves. Este, por seu lado, sabia que o interlocutor era Caldeira dos Santos (seu “amigo” dos tempos da Escola Naval, segundo palavras da entrevistadora). Mas pelos vistos nem a esse amigo quis dar-se a conhecer: Gonçalves era dos que atiram a pedra e escondem a mão.
A ocultação da identidade do mensageiro não deixa de dizer-nos alguma coisa sobre o grande circo mediático que foram as comemorações dos 40 anos do 25 de Abril: nelas, Lourenço Gonçalves foi promovido a herói da revolução sem invocar nenhum outro mérito nem nenhum outro desassombro que o de fazer uma chamada anónima!
Mas, voltando à plausível suposição de que o imediato efectivamente ignorava a identidade do seu interlocutor, passamos a encontrar-nos perante duas possibilidades: ou o comandante está enganado na reconstituição do diálogo datada de 1976, e o imediato lhe confessou na altura essa ignorância; ou o comandante recorda correctamente o diálogo e o imediato não quis admitir uma ignorância que – certamente o sabia de antemão - desacreditaria completamente a comunicação recebida.
Como poderia o comandante arriscar as vidas de toda a guarnição, fazendo navegar a fragata ao alcance de tiro dos fortes controlados por um “Movimento” desconhecido? Como poderia ele enfrentar o Estado-Maior para cumprir ordens transmitidas pela chamada anónima de um oficial que nem o imediato tinha identificado? A segunda hipótese é, evidentemente, a mais lógica: sobre este ponto, o imediato terá evitado confessar a sua ignorância sobre a identidade do interlocutor.
A exoneração do imediato e um buraco negro na narrativa
Seja como for, o comandante teve motivos para pensar que o imediato lhe ocultava informação essencial – e naquele momento ainda o comandante não sabia da missa a metade. Disse-lhe então que o exonerava, em linguagem que o imediato descreve como “imprópria de um oficial superior”.
A descrição sugere um vernáculo de marinheiro. Mas poucos dias depois do 25 de Abril, o imediato declarara na tal averiguação do Comando Naval do Continente feita “sobre o joelho” que os impropérios se reduziam ao seguinte: “Cale-se, não diga asneiras, você está pálido e com medo”. A versão do comandante no Auto de Averiguações de 1976 não difere muito e consiste no seguinte: “Você está amarelo e cheio de medo”.
As palavras ásperas, ditas diante de terceiros, tinham a atenuante da grande tensão nervosa vivida a bordo e sempre eram ditas cara a cara. Podemos perguntar-nos que palavras terá dito o imediato sobre o comandante, nas costas deste e nos conciliábulos que durante a manhã manteve com os oficiais. Compreensivelmente, no Auto de Averiguações, nenhum oficial menciona essas palavras.
Para nos aproximarmos de uma resposta à pergunta, temos apenas os violentos insultos contra o comandante que, com 26 anos de atraso, o imediato finalmente encontrou coragem para verter no papel. E temos as palavras citadas pelo capitão-de-fragata Sérgio Ribeiro Zilhão que, tendo encontrado Caldeira dos Santos depois do 25 de Abril, ouviu dele o motivo para a sonegação de informações que foi nesse dia a nota dominante do seu comportamento: “Odiava aquele gajo”.
Observemos aqui que a tensão em torno das ordens de tiro para o ar e a comunicação do Movimento devem ter ocorrido por esta ordem, mas muito próximas uma da outra. As incongruências que atrás assinalámos em depoimentos do imediato são até certo ponto compreensíveis. No Auto de Averiguações de 1976, também o comandante mostra, assumidamente, alguma hesitação sobre qual dos factos terá ocorrido primeiro.
Mas a intenção de exonerar o imediato com toda a certeza terá resultado do estranho papel que este desempenhou ao transmitir a ordem do Movimento. Se o imediato tivesse declarado uma “recusa” às ordens de fogo para o ar e o comandante o tivesse exonerado nesse momento, não faria qualquer sentido que o imediato viesse ainda, depois disso, transmitir-lhe uma ordem do movimento, com aparente confiança em encontrar receptividade.
Mas voltemos à exoneração. Segundo a lenda da “Gago Coutinho”, depois de exonerar o imediato o comandante terá abordado todos os oficiais, um por um, e todos se terão recusado a assumir o lugar deixado vago. Segundo o Auto de Averiguações, a realidade é bem diversa. O comandante abordou o tenente mais antigo, Varela Castelo, que efectivamente se escusou. Houve seguidamente uma segunda conversa no mesmo sentido com o tenente Palhinha, que não opôs ao comandante uma resolução de ordem pessoal, antes lhe fez notar que, provavelmente, “o pior já passou” e que “é preferível ficar tudo como estava”.
O comandante, que nesse momento desconhecia ainda a actividade conspirativa do imediato, pareceu dar-lhe razão. Deixou, portanto, “tudo como estava”.
Devemos deter-nos aqui por um momento a observar o que fez o imediato nesta circunstância. Os depoimentos dos declarantes no Auto de Averiguações praticamente não guardaram qualquer registo de acções ou palavras do imediato entre esse momento e uma segunda reunião convocada pelo comandante. Nas duas horas e meia que se seguem, deixamos de ter notícias dele, dos seus ditos e feitos.
Só o imediato sabe como ocupou esse tempo e nós teremos, aqui, de contentar-nos com a sua versão. Mas também essa versão é parca em detalhes: segundo declarou logo no inquérito de 1974, “o oficial imediato seguiu de livre vontade para a câmara dos oficiais, por indecisão se havia ou não sido exonerado”. Adiante voltaremos ao significado deste buraco negro na narrativa.
Reunião com o navio fundeado
Às 14h15, com o navio fundeado no Mar da Palha, o comandante voltou a convocar uma reunião na câmara dos oficiais. Era portanto a segunda vez no lapso de seis horas que o comandante “autoritário e desumano” reunia a dezena de oficiais da guarnição e tratava de ouvi-los, do mais moderno para o mais antigo como é habitual, de modo a encorajar os mais jovens, para que pudessem manifestar-se com o mínimo de condicionamentos.
As interpretações sobre o sentido da reunião divergem, havendo entre os oficiais uma opinião bastante difundida de que ela revestia um significado recriminatório, sobre factos já ocorridos; e sustentando o comandante que se tratava de uma reunião com sentido prospectivo, destinada a preparar o navio para as horas seguintes, que ainda podiam ser difíceis.
Segundo o relatório do Auto de Averiguações, as versões contraditórias sobre o teor da reunião autorizam, mesmo assim, a conclusão de que o comandante “não perdeu a primeira oportunidade – o navio fundeara, por fim - para reunir-se com os oficiais a definir posições, não se demitindo das responsabilidades que continuava a ter, não só em face dos acontecimentos passados, mas principalmente perante o futuro que para ele continuava a constituir uma incógnita”.
Para além das formulações mais ou menos felizes utilizadas e dos equívocos criados, têm lógica vários argumentos do comandante. Por um lado, seria absurdo chamar todos os oficiais à câmara e confrontá-los, todos juntos, com a acusação de “insubordinação”. Se o comandante quisesse lançar contra alguém essa acusação, não iria certamente fazê-lo sob a forma de uma recriminação colectiva, metendo no mesmo saco oficiais que tinham manifestado “discordância” e “relutância” e outros que até aí nada lhe tinham dito.
Convocar a reunião só fazia sentido para obter garantias sobre a coesão da guarnição perante a incerteza das horas seguintes. Nesse quadro, só teria lógica o comandante dizer o que o seu depoimento reteve – pelos vistos sem ter passado a mensagem pretendida.
Segundo o seu depoimento, o comandante disse na reunião que, caso o navio voltasse a receber ordens de fogo, todos e cada um dos oficiais deviam pensar se iriam recusá-las, mesmo correndo o risco de essa recusa ser considerada como insubordinação. E assumiu que a não execução das ordens de preparação para o fogo pesado e de preparação para o fogo de exercício tinha sido da sua única e exclusiva responsabilidade. Ou seja: não houvera até aí qualquer insubordinação a bordo.
Quem ignorara a ordem do Estado-Maior para fundear, quem alegara perante o Estado-Maior objecções à ordem de fogo pesado e quem dera a cara para invocar perante o mesmo Estado-Maior dificuldades pouco convincentes na ordem de fogo para o ar - fora sempre o próprio comandante. Se a revolução falhasse, como a bordo ainda se admitia nesse momento, era a ele, antes de mais ninguém, que o Estado-Maior pediria contas.
(prossegue na Parte II)
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